sábado, 9 de abril de 2011

A História do Menino Jesus

Adaptado por Rafael Rivas



Segundo contou minha mãe, quando eu era criança era um pouco dele, meu pai, uma eterna lembrança.


Tudo começou num bar. Ali, eles dois se amaram num só olhar. Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar. Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar. Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente. E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente.


Sem ao menos esperar ele teve de ir embora, assim de repente. Disse que deveria enfrentar tempestades, valentemente.


Na partida, deixou as seguintes palavras de despedida: “Quem me dera ficar meu amor, de uma vez. Mas escuta o que dizem as ondas do mar. Seu eu me deixo amarrar por um mês na amada de um porto, noutro porto outra amada é capaz de outro amor arranjar. Ah, a minha vida, querida, não é nenhum mar de rosas. Chora não, vou voltar”. 


Secando as lágrimas no cais, ela assim disse, pra nunca mais: “Quem me dera amarrar meu amor por quase um mês, mas escuta o que dizem as pedras do cais, marujo cortês. Volte, assim como estais. Volta sim, e segue em paz”.


Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde, deixando minha mãe com o olhar cada dia mais longe. Ela se despediu dele, que em um barco partia, bem onde ele jurou que voltaria. E ela, encharcada em prato, jurou que esperaria.


Esperando, parada, pregada na pedra do porto, com seu único velho vestido cada dia mais curto, ela então cantarolava uma música que falava do mar, da saudade que sentia e da amargura de tanto amar:

“Tristeza, por favor, vá embora. A minha alma que chora, está vendo o meu fim. Fez do meu coração a sua moradia. Já é demais o meu penar. Quero voltar àquela vida de alegria. Quero de novo cantar”… e com voz embargada, cantarolava o refrão: “la ra rara, la ra rara, la ra rara, rara. Quero de novo cantar”.


E assim permanecia ali, a esperar, sempre no cais. Usava o mesmo vestido, pois, se ele voltasse, não iria se enganar. Aguentava bem forte, mesmo não sendo capaz. O marujo de ouro no dente, que tempestades enfrentava, e com todas as mulheres falaz.


Mais de mil luas se passaram e o tempo se escorreu. Ela pensava que o barco virara e que seu amor no mar morreu. Mas então, prenhe de esperança, lembrava-se dos dizeres. E assim seus olhos se encheram de amanheceres.


Sozinha no esquecimento, com seu espírito ao relento. Sozinha, com seu amor em mar, no porto a esperar.


Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto.  Vestiu-me como se eu fosse assim uma espécie de santo. E não sei bem se foi por ironia ou se por amor, resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor.


Na infância, sem conhecer o marujo, minha mãe contou-me, em um dia carujo, da sua valentia, dos versos que fizera pra ele, falando de mim e também do que sentia. Catava:

“Veja bem, meu bem,

Sinto te informar, que arranjei alguém pra me confortar.

Este alguém está quando você sai.

Eu só posso ter, pois sem ter você nestes braços tais.


Veja bem, amor, onde está você?

Somos no papel, mas não no viver.

Viajar sem mim, me deixar assim.

Tive que arranjar alguém pra passar os dias ruins.


Enquanto isso, navegando eu vou sem paz.

Sem ter um porto, quase morto, sem um cais

E eu nunca vou te esquecer, amor.

Mas a solidão deixa o coração neste leva-e-traz.


Veja bem além destes fatos vis.

Saiba: traições são bem mais sutis.

Se eu te troquei não foi por maldade.

Amor, veja bem, arranjei alguém chamado saudade”.


“laiá, laiá... laiá, laiá”.


Eram versos lindos, como seus olhos, já azuis pela cor do mar. Enquanto ela esperava lá, cansada de tanto amar, na pedra do porto, com aquele o olhar quase morto, a esperança escrava, ainda sorria quando uma embarcação no cais atracava.


Seu cabelo se branqueou, mas nenhum barco seu amor a devolvia. Os caranguejos lhe mordiam, sua roupa, sua tristeza, sua ilusão. Todos a chamavam de louca, a louca do cais. Mas ninguém podia arrancá-la. Do mar, não a separaram jamais.


Certo dia deixei-a sozinha, no esquecimento, com sua agonia, seu espírito, seu amor em mar. Com o sol, o velho vestido a voar, permaneceu naquele lugar, no molhe de São Bras.


Agora conto minha história, com esse nome que ainda hoje carrego comigo, quando vou de bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo. Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz, me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus.






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"Minha história" (Gesú bambino), música e letra de Lucio Della e Paola Pallotino, versão de Chico Buarque.
"El Muelle de Sán Blas", música e letra de Fernando Olvera e Álex González, banda Maná.
"Tristeza", Vininius de Moraes.
"Veja bem meu bem", Música e letra de Marcelo Camelo.
Adaptação minha, com versos e palavras que dão rima e ajustam ao contexto das músicas para expressar a ideia do texto.

Um comentário:

  1. Parabéns conseguiu mesclar as estórias de cada canção com maestria... Com excessão daquela interpletada pela banda Maná, que não conheço, as outras são lindas canções, com uma profundidade de sentimentos tocante, diganas da homenagem!

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