A ideia do suicídio é uma grande consolação:
ajuda a suportar muitas noites más.
- Friedrich Nietzsche
[Aviso de gatilho] [Suicídio]
Não há um ser humano mais
motivado que um suicida. É triste dizer, mas é verdade.
A corda aperta no pescoço e o
corpo cai emitindo um som: cleck!
Assim começa a história de
Sofia, que não tem o nome de suicida. Talvez nunca tenha existido na história
dos suicidas uma Sofia. Um nome que inspira coisas totalmente contrárias a
alguém que causa a própria morte. Mas a história de Sofia não é como a
literatura trata as sofias.
A coisa toda começou de maneira
meio curiosa. Sofia decidiu que este seria seu último dia de vida e pronto! Para
ela, nada mais fazia sentido, como de costume. Nenhuma alegria estava no
porvir, depois de tanto tempo amiga do sofrimento e do desengano. E, neste dia,
eles lhe pegaram pela mão e percorreram os três pela velha casa que haviam
ganho de herança a busca de um ponto final.
Ela pegou um frasco do
antidepressivo que tomava há dois anos, abriu e jogou os comprimidos no lençol
da cama. Pesquisou na internet e descobriu que uma overdose precisaria de mais
de 10mg, e ela só tinha 6 comprimidos de 1mg. Concluiu que, tomando as pílulas,
no máximo acordaria a três dias na poça de sua na própria merda. Mas Sofia
estava motivada.
Ela então foi à procura de
uma corda de sisal que lhe surgiu na lembrança. Estava no armário da cozinha,
abandonada, e serviria de varal um dia. Nunca serviu. Serviria agora, ainda
que, na lembrança suicida de Sofia, uma corda no pescoço nunca tenha surgido
como opção.
Mas a motivação impulsiona a
criatividade.
Sofia então pensou,
ponderou, calculou, porque suicidas também calculam muito bem, mesmo que não
sejam bons em matemática. “Com 3mg eu entro em estado de sono em pouco menos
que meia hora. Tenho 6mg com os seis comprimidos, tomo e faço a forca”.
Ah, a internet é um campo
fértil para os suicidas. E Sofia trazia novidades, embora não as pudesse
compartilhar pela pressa da criatividade que a impulsionou. Pegou o tutorial de
como fazer os nós da forca – o do mastro e o que pende o pescoço – e escolheu o
melhor lugar, sabendo que seria o último. Apesar do improviso, tudo que ela
escolheu pra estar consigo no seu último momento tinha um sentido, uma
história. Por isso escolheu o vestido que usara quando descobriu que seria mãe,
e decidiu com esmero o pedaço da tesoura de madeira que sustentava o telhado da
velha casa dos seus pais, num pé direito mais alto que o resto e que aparecia
pelo forro roído pelas chuvas fortes no telhado cheio de goteiras.
Era um pé direito alto, mas
não tanto para pender o corpo esguio de Sofia junto com bastante pedaço de
corda. Só que Sofia estava motivada. No velho depósito de ferramentas do seu
pai, achou uma serra enferrujada, mas que ainda prestava a cortar uma ripa de
madeira. A criatividade fluía. Pensou: “Deixo o mochinho em três pés. Amarro a
corda na tesoura, ajeito a forca no pescoço. Tomo o remédio para dormir. Quando
o remédio fizer efeito, eu durmo, o mochinho escapa dos pés e eu morro
enforcada dormindo, de forma indolor”.
Ah, quão motivador é uma
mente criando uma ideia tão inovadora para um momento de necessidade, quão
desesperadora é a necessidade que criou tal motivação!
Assim ela o fez. Amarrou a corda
da forca na tesoura com o mocho ainda em quatro patas, desceu, cortou um dos pés,
engoliu de supetão os seis comprimidos, subiu se equilibrando nos três pés do mochinho
e ajeitou a corda no pescoço, sentindo lhe irritar a palha seca do sisal. Ela repousou
seu corpo ereto e esperou.
A irritação pareceu lhe
trazer tudo de ruim que contribuiu para este momento derradeiro: “Argh!”
Ela tentava ajeitar a corda
como um executivo ajeita sua gravata num dia quente. Mexia, afrouxava um pouco,
mas nada fazia a sensação ser melhor. Era a corda? A culpa? A raiva do
ex-marido! A raiva do irmão! A saudade do filho...
Dizem que, nos últimos segundos
de vida, a todos nós é imposto uma retrospectiva da vida. Talvez como um
preparo para encarar a realidade, um mimo do cosmo para dirimir a dor que
desvincula a alma do corpo. E embora se diga que não aconteça em experiências
de quase morte, Sofia experimenta com quase toda sua plenitude o filme de sua
vida passando por seus olhos, embora fora da ordem cronológica.
Primeiro vem seu filho à
memória. A imagem do parto; ele inda bebê trocando pela primeira vez os olhares
com ela, o rosto cheio de sangue; a primeira chupada no que então eram apenas seus
peitos - brinquedos de homens tão supérfluos -, esperando com olhos brilhantes sorver
o amor de mãe após o colostro. E ele cresce no contínuo do filme: tomou jeito
de menino, com suas roupas de menino, brinquedos de menino, até vir um tapa na
face da memória, um capricho que a derradeira lembrança fez questão de
reproduzir de maneira física. Ela vira o rosto, fazendo a corda de sisal lhe
doer mais que o normal, e era o tapa do seu ex-marido, pai do seu filho. Um dos
tantos que levou e se conformou, recolhendo-se em sua insignificância. E vem na
memória vívida o grito desse homem dizendo que ela nunca mais será a mãe do seu
menino, que é incapaz. Lembra que há mais um ano não vê seu filho, que ele deve
ter se esquecido da mãe, absorvido pela narrativa do pai. Mas reconforta-se ao
pensar que o menino era delicado e sensível, que chorava toda vez que a mãe
apanhava. E tenta lembrar do seu sorriso quando a retrospectiva lhe trouxe
outro tapa na cara, menos físico, contudo mordaz: seu único irmão, mais novo,
que nessa mesma velha casa onde ela decidira a própria morte, ficara órfão
junto a ela. E lembrou que era sua culpa a morte dos pais, pois tinha fugido à
noite pelo portão e o deixara aberto, deixando os bandidos entrarem e
assassinarem seus pais.
Sim! Foi essa a culpa que
ela sempre trouxe na vida! Ela nunca conseguiu se recuperar disso. Era algo que
voltava de sempre em sempre na memória viva, minando sua vontade, corroendo sua
autoestima. Ocorria uma erosão no seu espírito cada vez que lembrava que havia dado
a oportunidade para os bandidos matarem sua família. E para quê? Uma festa
fútil que nem lembrava mais, a adrenalina da fuga à autoridade de uma
adolescente inconsequente.
Mas a retrospectiva não
funciona bem como se diz, não! Pra se falar a verdade, ela acontece como uma
epifania. Ela revela coisas tão escondidas que não podem ser contempladas pela
mente consciente ou pela lembrança que se tem em vida. Talvez para preparar o
espírito para o que há por vir. E aí que Sofia descobriu que nunca havia
contribuído para o assassinato dos seus pais. Ela pulou o muro!
Ah, que detalhe lhe
escapara! Isso mudaria todo curso de sua história! A culpa imposta pelo irmão absorvida
sem pensar... A vida mal vivida pela culpa... A culpa auto alimentada que a
tornou cativa da violência... De fato, ela nunca saiu pelo portão, ela pulou o
muro alto no canto da roseira justamente por achar que o portão estava cadeado!
Sentiu na pele até a lembrança do corte nos espinhos da roseira. Justo agora
lembra disso? Por quê?
O cálculo estava certo,
segundo sua margem. Ela já não conseguia mais ajeitar a corda com suas mãos,
anestesiadas pelo antidepressivo. Fez força, mas só conseguia concentrar as
pernas para não fraquejar. Mal conseguia se equilibrar.
Sua vida fora uma sucessão
de culpas sem motivos, concluiu, mas cada segundo que passa a corda pesa mais
no pescoço. O sono vai tomando conta do corpo. O peso de ter escolhido como
parceiro um homem abusivo e violento em razão de sua baixa autoestima tenta
reacender a consciência, mas tudo que ela consegue é sentir a culpa de deixar o
filho nas mãos desse homem. A motivação vai dando lugar ao arrependimento.
Algo que ela aprendeu com o
tempo é que todos deveriam escolher a própria morte, porém a escolha deveria
ser exaurida de arrependimentos. E agora? Sofia não consegue mais abortar a
ideia genial que teve. O esgotamento do corpo chegou ao ápice, ela mal consegue
mexer os braços, mesmo percebendo que nada disso mais faz sentido. Ela dá um último
suspiro de consciência, o corpo amolece, pende, o banco tripé cai, a corda
enrijece e... clec!
Com a corda em seu pescoço e
os pedaços da velha tesoura corroídos e tombados pelo corpo, Sofia acorda caída
no chão, depois de três dias dormindo na poça da sua própria merda.